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Açordas Alentejanas, a sua Origem, História e a Herança Muçulmana

 

Por norma, quando falamos de açorda de alho alentejana, de imediato fazemos a ligação aos Árabes e a consideramos como uma herança gastronómica. Na verdade, não é bem assim! A grande herança gastronómica está no seu nome e designação: Açorda. 

Açorda é uma técnica culinária em que o pão é ensopado em algum tipo de caldo. A açorda pode ser quente ou fria, como por exemplo, o caspacho ou gaspacho alentejano – uma açorda fria. Vou pois falar um pouco de açordas, as suas origens Árabes e os diversos pratos que recebemos como herança dos muçulmanos.  


Açorda de Alho
Açorda de Alho

As primitivas açordas árabes, com origem no século V, surgem numa zona desértica. Em muitos casos limitar-se-iam ao pão e à carne na sua composição. Esse conjunto quase matricial do pão e da carne, constata-se também no al-Andalus e, da mesma forma, permaneceu na gastronomia do Gharb al-Andalus, mesmo quando esta região foi integrada no Reino de Portugal no século XIII.


AÇORDAS ALENTEJANAS, A SUA ORIGEM, HISTÓRIA E A HERANÇA MUÇULMANA 


Tudo leva a crer que da primitiva açorda árabe terão divergido, posteriormente, em diferentes momentos e contextos, e em versão algo mais substancial, o cozido à portuguesa (com carnes e vegetais); a sopa da panela (açorda de aves); e uma versão mais pobre, mas talvez a mais simbólica, da açorda “alentejana” com azeite como fonte proteica.

A tradicional “açorda de alho alentejana”, que tem um conjunto de ingredientes escassos e algo pobre, costuma ser acompanhada por azeitonas, mas também por ovos cozidos e peixe frito (carapaus ou sardinhas), bacalhau ou uvas, figos e melão. 

O condimento clássico é um piso de alho, coentros e/ou poejos verdes. A açorda mais simples, chamada de “cega”, nem leva acompanhamentos.

Açorda de Alho Alentejana
Açorda de Alho Alentejana

As primitivas caldeiradas das zonas litorais, teriam as sopas de pão como componentes (hoje substituídas pelas batatas, acompanhadas pelo tomate e pelo pimento, que acabaram por se tornar fundamentais nas caldeiradas). É possível que aquelas primeiras caldeiradas fossem algo semelhantes às “poejadas” (como ainda hoje é cozinhada a “açorda de bacalhau” ou “poejada”), com o pão, o caldo do peixe e dos poejos, mas sem a presença de frutos e vegetais que só depois do século XV foram introduzidos na Europa.

Nas costas marítimas do Gharb al-Andalus constata-se desde o período islâmico, a presença de um género de caldeirada de moreia (al-muwâraj), que seria então uma “açorda de moreia”. 

É provável que dessa época possa também ter surgido a chamada “sopa de cação”, também ela uma açorda, pois leva sopas de pão na sua composição.

Ainda como sopas de pão ou açordas, temos outras a que se associam plantas bravas ou selvagens, como as beldroegas, ou plantas domesticadas, como os espinafres e a alface, a que se junta queijo e ovos escalfados.

As diferentes açordas, em que o pão não é presente em sopas, mas em que o mesmo é cozinhado, acabam como “migas de …” ou “açorda de …”, tomando o nome da componente que é associada ao pão. Assim surgem, por exemplo, as açordas de marisco e as açordas ou migas de espargos, para referir apenas algumas das mais conhecidas.
 
Dentro das açordas “doces” porque também as há, referir a versão original do “pão de rala”, doce que tem como ingrediente base a massa de pão e a que se associam ovos, açúcar, limão, amêndoas e gila (ou chila); e ainda as “tibornas alentejanas”, feitas à base de pão migado recém-saído do forno e que, na sua versão mais simples, é regado com um fio de azeite e polvilhado com açúcar e canela. 


AÇORDAS ALENTEJANAS, A SUA ORIGEM, HISTÓRIA E A HERANÇA MUÇULMANA 


Para se perceber a origem das açordas e em especial a Açorda de Alho alentejana, é necessário em primeiro lugar ir ao vocábulo “sopas”, que durante o período moderno, refere-se a uma técnica e registo culinário diferente do atual. 

Corresponderia a um preparado simples feito à base de pão e caldo, resultando do cozimento de carne ou legumes. Por este motivo, ainda hoje, em muitas regiões do Alentejo, se utiliza o termo caldo, sopas ou açorda para o mesmo prato. Até há poucas décadas atrás (hoje já pouco utilizado) a “açorda alentejana” na região de Castro Verde, era acompanhada com sobras de carne cozida do “jantar” do dia anterior, muito semelhante à açorda de hortelã.

Caldo ou Açorda de Espinafres
Caldo ou Açorda de Espinafres

No Baixo Alentejo, por exemplo, às conhecidas sopas de beldroegas, há quem chame caldo de beldroegas ou açorda de beldroegas. A sopa de bacalhau com espinafres, para alguns é caldo, para outros, açorda. São inúmeros os exemplos e sempre o mesmo prato, somente com poucas ou nenhumas variantes.
 

Mas vamos ao que interessa, origem e história de um prato tipicamente alentejano, a açorda.


Parece simples falar sobre a açorda, mas não. Não é tão simples como pode parecer. Irei de forma muito sintética e resumida, falar sobre esta iguaria alentejana. 

Existem muitos gastrónomos e historiadores que defendem que a sua origem é Árabe. Outros há que defendem que a açorda de alho alentejana, tem origem na época romana com as suas receitas de cereais e fruta, os pisos, como é exemplo o molho pesto, primo do nosso piso da açorda de alho alentejana e, claro, com alterações árabes. Seja como for, a excelência deste prato é indiscutível, tanto pela simplicidade como pelo sabor.

Molho Pesto
Molho Pesto

O termo “açorda” não identifica em Portugal um mesmo género culinário. Enquanto a chamada “açorda alentejana” se pode considerar uma sopa, as outras açordas são basicamente uma pasta à base de pão, a que se acrescenta o elemento que acaba por dar o nome ao prato. No Alentejo estas outras açordas são designadas como “migas”. 

Mas se a etimologia árabe do termo não deixa dúvidas, o mesmo não acontece com as práticas culinárias e com os ingredientes, muitos dos quais já estavam na Hispânia há séculos, ou mesmo há milénios, podendo assim alvitrar que a origem da “açorda de alho alentejana” não estará nos muçulmanos, mas sim nos romanos ou mesmo ainda, antes da sua chegada à Península Ibérica, que depois foi adaptada aos usos e costumes muçulmanos. 


ETIMOLOGIA DA “AÇORDA” 


A etimologia do termo “açorda” deriva do idioma árabe, tharada que significa “migar pão”, tharîd ou tharîda, com os plurais tharâ’id ou thurûd, significa “pão migado e ensopado com carne e caldo”. No árabe dos primórdios do Islão, o termo tharîd identifica uma “sopa de pão e carne”. 

O termo português “açorda” provém do árabe andalusino, falado na Península Ibérica sob o domínio muçulmano, thurda / çurda ou thorda / çorda, este último o mais próximo do atual termo português, ao qual ficou associado o artigo “al”, que em certos casos perde o seu som consonântico normal e passa a ser pronunciado como a primeira letra da palavra seguinte, como por exemplo, em açúcar, de as-sukkar ou em azeite, de az-zayt. Embora o pão seja sempre o ingrediente base, surge também um segundo ingrediente, a carne.


A PRIMITIVA AÇORDA ÁRABE 


Até onde é possível investigar, a presença da tharîd, a açorda árabe, conduz-nos à Arábia pré-islâmica. Trata-se de um dos pratos mais característicos da «cozinha árabe», e cuja criação se atribui a Hâshim bin ‘Abd Manaf, que nos faz colocar, no tempo, a origem da açorda árabe, algures nos meados do século V, em Meca. Apesar da escassez informativa, a tharîd deveria ter o pão, a carne e o respetivo caldo da carne que ensoparia o pão. 

Curioso e interessante, é sabermos que também na composição do mesmo, a existência de um género de abóbora (dubbâ’) bastante utilizada e uma das poucas espécies vegetais possíveis de produzir naquele clima desértico. Ou seja, tratar-se-ia de uma “açorda” que mais se assemelharia a um cozido de carne e abóbora e ao qual se adicionava o pão, previamente migado. 

AÇORDAS ANDALUSINAS


Com a chegada dos muçulmanos à Península Ibérica no início do século VIII, terá chegado também a açorda. Nos dois tratados conhecidos de culinária hispano-árabe, respetivamente o atribuído a Ibn Razîn al-Tujibî, FuDâlat al-Khiwân fi Tayyibât al-Ta'am wa-l-Alwân (O Destaque das Mesas, nas Delícias da Comida e dos Diferentes Pratos) e o anónimo Tratado de Cocina Hispano- Magribi, encontramos receitas de pratos classificados como thurûd, açordas. 

No primeiro tratado temos 27 receitas, enquanto no segundo tratado apenas 15 receitas de tipologia similar. 

Gravura com vista sobre Granada
Gravura com vista sobre Granada - Fonte - www.filmspot.pt

O primeiro Tratado é, sem dúvida, o mais importante, não apenas porque contém mais receitas, mas sobretudo porque foi todo ele composto em al-Andalus e sobre a gastronomia andalusina; enquanto o segundo Tratado, integra receitas de al-Andalus, mas também receitas originárias do Maghreb (o oeste norte-africano). 


INGREDIENTES


No conjunto de quarenta e duas receitas há ingredientes comuns, que constituem a marca identitária do que então se entenderia por “açorda”.

O pão 
O pão é a base da açorda. Na sua utilização predomina o pão migado em sopas e geralmente escaldadas com o caldo. Também há algumas receitas em que o pão é tratado de forma a produzir um género de migas (o pão é cozinhado de forma a produzir uma pasta). Encontram-se também utilizações de sêmola de trigo (cuscuz); ou, numa forma ainda mais elaborada, a produção de massa folhada que acaba por dar origem às conhecidas empadas. 

Calducho ou Migas de Poejos
Calducho ou Migas de Poejos

A carne 
A presença de carne nas “açordas” estaria diretamente dependente da acessibilidade à mesma, pelo que a utilização de carne ajudaria a identificar os estratos sociais mais elevados. Estando a carne, naturalmente, mais acessível à elite, os mais pobres limitavam-se a acrescentar uma gordura (de origem animal – banha de borrego, ou vegetal - o azeite) ao caldo onde ensopavam o pão. 

Entre as carnes utilizadas na produção da açorda (existem algumas semelhanças com o cozido à portuguesa), identificam-se os pombos, os capões, as galinhas e também peças de caça (coelhos, lebres e perdizes), todas estas comuns nos repastos das elites, embora com uma predominância das aves. Ainda hoje, no Alentejo, em muitas regiões se utiliza o termo açorda de perdiz, açorda de lebre ou mesmo açorda de coelho ou galinha.

A vaca e o borrego, mais comuns, eram as carnes mais utilizadas nas “açordas” dos estratos menos abonados.
 
Por último, surgem receitas destinadas a aproveitar ossos, cozendo-os e escaldando o pão migado. São receitas que identificariam uma alimentação muito mais pobre e que seria a das camadas mais baixas da sociedade.


Os vegetais 
Relativamente aos vegetais, existem receitas que estarão, também elas, na origem direta do nosso cozido: encontramos as abóboras, mas também encontramos referências às beringelas. 
Entre as verduras de folha, encontram-se as couves e as alfaces; entre as leguminosas, surgem o grão-de-bico e as favas. Até mesmo as trufas eram consumidas nas “açordas”.

Sopa ou Açorda de Alface
Sopa ou Açorda de Alface

Os lacticínios 
Constata-se a presença de lacticínios como ingredientes, quer nas açordas salgadas quer nas açordas doces. Assim, encontram-se receitas que usam leite e seus derivados (manteiga, queijo) em “açordas” salgadas. Ainda hoje no Alentejo, as sopas de beldroegas, de alface e de espinafres (tecnicamente “açordas”, pois integram sopas de pão) levam queijo na sua preparação. 

Sopas, Caldo ou Açorda de Beldroegas
Sopas, Caldo ou Açorda de Beldroegas

O leite é também um ingrediente de grande importância na composição das “açordas doces”, sendo geralmente acompanhado pelo mel, o açúcar e a canela, um conjunto de sabores ainda hoje muito comum na gastronomia portuguesa.

Os condimentos 
Entre os condimentos encontrados, os que já vinham de épocas e culinárias anteriores: o sal, o azeite, os coentros, as cebolas, o funcho e o açafrão. Deste conjunto, os quatro primeiros aos quais se junta a pimenta, constituem a base para cozinhar as carnes, pois o conjunto repete-se em praticamente todas as receitas. 

A pimenta, a canela e o gengibre, eventualmente já conhecidos e usados antes durante o período romano, tiveram no al-Andalus. as condições quantitativas que permitiram uma maior vulgarização daqueles produtos e, portanto, um acesso mais facilitado aos mesmos por parte dos estratos médios da sociedade.

OUTRAS AÇORDAS


Açorda Moçárabe 
Há também uma outra açorda, que era tradicionalmente consumida em Dia de Ano Novo (curiosamente identificado pela terminologia persa: Nayruz ou Nawruz). Ano Novo identificado inicialmente com o Ano Natural, ou seja, em Dia do Equinócio da Primavera. Esta receita poderá ter origem cristã moçárabe, uma vez que a festa do Ano Novo era especialmente celebrada pelos Cristãos moçárabes. O facto de os muçulmanos também participarem nesta e noutras celebrações cristãs, tornou recorrente a emissão de fatawa (pareceres jurídicos islâmicos) por parte de juristas andaluzes, principalmente a partir do século XII.


Açordas Judaicas 
Nesses tratados, existem ainda três receitas que poderão ter origem judaica, pois todas são elaboradas com pão ázimo, uma delas mais elaborada, chamada Shabbât. É elaborada com carne de várias aves,  que seria eventualmente consumida no final do jejum do Shabbât.
 
Nesta “açorda”, a carne era guisada e depois desossada. O caldo do guisado ia escaldar bolinhas de sêmola previamente elaboradas e cozidas no forno, já cobertas de alho picado e queijo seco ralado. 

A carne guisada e cortada, era espalhada sobre o pão ensopado e era acompanhada por ovos cozidos cortados. Por cima era coberta com amêndoas, nozes, azeitonas, mais queijo ralado, canela e óleo de nardo. 

O óleo de nardo é comum no universo judaico, encontrando-se na alimentação, na medicina e mesmo na unção religiosa, pelo que é mais um indicador de que este prato deveria ser da cozinha judaica do al-Andalus.

CONCLUSÃO


O que hoje conhecemos como açordas alentejanas, de imediato nos remete o pensamento para a açorda de alho alentejana e para os muçulmanos que habitaram a Península Ibérica. Contudo, talvez a sua existência, habitasse há muito o território peninsular. 

O piso que está na sua base, é um primo do famoso piso "Pesto" genovês e ainda do seu familiar “Picado” da atual região do reino de Espanha, comunidade valenciana. 

Dito isto, é bem claro que o termo “Açorda” é de origem Árabe, no entanto, a açorda de alho alentejana, deverá ter sido um aproveitamento muçulmano de um prato já existente no território peninsular, em especial nas regiões que hoje conhecemos por Alentejo Central, Baixo Alentejo e Algarve. 

Alentejo, Algarve e parte da Andaluzia, gravura do séc.XVIII
Alentejo, Algarve e parte da Andaluzia, gravura do séc.XVIII - Fonte - www.cidehus.uevora.pt

Se a açorda é nossa? Claro que sim! É bem alentejana! Se a sua origem é Árabe? Aí já tenho algumas dúvidas. Certo que o que é de herança Árabe é o seu termo e talvez a sua adaptação e transformação aos hábitos e costumes muçulmanos. 

Como se vê, os pratos alentejano como o cozido de grão, o cozido de couve e de forma geral a quase totalidade da gastronomia alentejana, essa sim, têm descendência direta das “Açordas” Árabes.  


RECEITA DE AÇORDA DE ALHO ALENTEJANA


A açorda de alho alentejana é um caldo quente, aromatizado com um piso de sal, alhos, coentros e/ou poejos e regado com azeite, onde se incorpora pão de trigo migado (fatiado). 


Açorda de Alho Alentejana
Açorda de Alho Alentejana


INGREDIENTES


PREPARAÇÃO
  1. Começamos pela preparação do piso. Utilizando um almofariz, pisam-se muito bem até ficar semelhante a uma papa, os coentros e/ou poejos, os dentes de alho picados e o sal grosso; 
  2. Deita-se o piso na terrina. Rega-se com o azeite e escalda-se com água a ferver;
  3. Com uma colher ou uma sopa grande, mexe-se o caldo e com uma fatia de pão prova-se se está temperada de sal. A essa sopa dá-se o nome de sopa mestra ou sopa azeiteira. Se a sopa se mantiver no centro da terrina, significa que está bem temperada;
  4. Introduz-se o pão migado e está pronta a servir; 
  5. Como acompanhamento, servem-se à parte, ovos cozidos, queijo fresco cozido e bacalhau cozido, tudo cozido na água que meteu a ferver;
Poderá no tempo da boa sardinha, substituir o bacalhau por sardinhas assadas. Uvas, figos e melão, são também um excelente acompanhamento.


NOTAS: Pode enriquecer o piso com 2 ou 3 tiras finas de pimento verde ou colocar antes de deitar a água a ferver.


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